domingo, 18 de setembro de 2011

Entre os muros da escola: ultrapassando o maniqueísmo


PS: Esse texto foi produzido em maio de 2011, e relaciona o filme "Entre os muros da escola" com alguns aspectos do livro de Paulo Freire "Pedagogia da autonomia". Decidi postá-lo por termos trabalhado com o livro na disciplina de EDCA11.
O filme “Entre os muros da escola” (França, 2008), sob a direção de Laurent Cantet terá como fio condutor de sua análise as ideias de Paulo Freire presentes do seu “livro-testamento” Pedagogia da Autonomia (1996), no que tange a dialética intrínseca entre o discente e o docente.
O filme se passa na França e é contemporâneo a sua época, podemos falar então em século XXI, onde a educação é posta em segundo plano pela maioria dos Estados (enquanto nação). É retratado o descanso de países (inclusive) de primeiro mundo com a educação, quebrando o paradigma responsável pela difusão da ideologia que a educação só é insuficiente em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, com por conta de não terem as questões materiais garantidas. Entretanto ao refletirmos sobre o ambiente escolar no filme percebemos que as condições materiais são basicamente supridas, podemos constatar isso, por exemplo, na cena em que os estudantes estão lendo o “Diário de Anne Frank”, pois todos têm acesso ao livro. As questões educacionais estão além das condições materiais elas estão na própria organização do ensino, na forma como se ensina, em como são considerados os sujeitos que agem na escola, a relevância da história de cada indivíduo, e a própria forma de como é utilizado às condições materiais oferecidas (ou conquistadas), afinal de forma alguma admitimos que as condições materiais fossem desnecessárias, ao contrário elas precisam existir e serem bem manipuladas.
Todavia, mesmo que o filme tenha como palco uma escola na França ele extrapola os “muros da escola”, pois reflete um cenário geral da educação no globo, o Brasil se aproxima muito daquela realidade, que no fundo é nossa realidade também. Salas plurais, que agregam várias nacionalidades, diferentes processos sócio-históricos, distintas relações com o processo de educação e aprendizagem. Garotas e garotos que tem sua própria visão de mundo, afinal têm que aprender diariamente que é gente, a exemplo do menino asiático Wey, que é obrigado a conviver com a ilegalidade e com o medo que é adjacente somado a dificuldade de estabelecer-se em um ambiente que lhe é alheio, mas que não pode ser, pois está inserindo-se nele. O exemplo do jovem Wey pode estender-se a vários jovens que estão no Brasil, afinal nem precisam ser de outro país para tão constrangimento, basta ser de “outra cor”, ser da periferia, ser alguém que é tratado como invisível todo dia, assim sendo é impossível que permaneçam d”entre os muros da escola”. Junto a isso percebemos uma necessidade latente que o professor una o saber acadêmico a prática diária, pois se esses forem descolados dificilmente haverá aprendizagem por ambas as partes (discente e docente).
Tento feito esse breve apanhado sobre o filme, é necessário sinalizar que não trataremos do filme em sua totalidade, mas em questões pontuais que unirão as ideias no filme com as ideias do educador Paulo Freire. Trataremos da ética no processo de ensinar, que nada tem a ver com subserviência ao interesse lucrativo, mas ao contrário a ética que condena a mentira, que abomina iludir “incautos e golpear o fraco e indefeso”, sem de forma alguma abraçar a demagogia, portanto falaremos também da coerência do discurso com a prática. Essa ética é a ética indispensável para convivência social, que faz os estudantes entenderem que não estão determinados a, mas são condicionados, portanto pode-se mudar a realidade.
Analisaremos o conselho disciplinar e a sala de aula do professor François Marin, pois o filme não traz outras salas de aula, mas é evidente que a reflexão ultrapassa essa geografia.
Se nosso olhar sobre o filme for superficial buscaremos culpa nos sujeitos, ou culpando os estudantes por os considerarmos indisciplinados, ou o professor que insulta os alunos, sendo a primeira muito mais defendida. Mas se superarmos a aparência veremos que a grande questão está na organização escolar, que por sua vez é formada por sujeitos. Embora na teoria existam órgãos democráticos de deliberação tripartite, na prática já é sabido que os seus resultados são decididos antes mesmo do seu acontecimento, como é o caso de Souleymane, que é expulso da escola. Usando do exemplo desse mesmo estudante vemos a impunidade do professor François que chama duas estudantes de vagabundas, e são postos panos quentes por o sistema educacional. Não há “punição” ao docente que continua na escola como se nada houvesse acontecido, enquanto os destinos do jovem Souleymane são ignorados. Perguntamos então se Sócrates está certo ao dizer que a justiça serve ao mais fraco e não ao mais forte, ao menos nesse caso vemos que não.
Esse fato nos trás uma grande questão, pois o mesmo professor que é responsável por denunciar Souleymane é o mesmo que propõe uma atividade de auto-retratos para a sua turma de ginásio com o intuito de conhecê-la e lhe dá com os seus processos históricos, que com o mesmo estudante tem prática pedagógica exemplar quando este se recusa a realizar a atividade e o professor percebe outra habilidade que o mesmo possui – a fotografia – e a explora para que este venha aprender, para que o mesmo supere a curiosidade comum para a curiosidade epistemológica. O professor que condena o estudante no conselho disciplinar é o mesmo defende suas aptidões “além dos muros”. É esse mesmo professor que tenta voltar atrás na denúncia ao saber por uma colega de classe de Souleymane, que ele pode ser mandado para o seu lugar de origem (o estudante é africano). Como explicar posicionamentos tão destoantes em um mesmo sujeito? Certamente não há uma resposta exata, mas percebemos que os professores são embutidos de emoção, e que por vezes não sabem como agir com elas, remetendo-nos que o professor não deve ser idealizado, como alguém que tem vocação a docência, sendo necessário que os investimentos sobre a sua formação ultrapassem a aprendizagem do conteúdo já que a sala de aula traz condições novas a cada dia, já que os participantes desse processo são sujeitos ativos. Mas a grande questão não se focaliza no professor, além disso, os órgãos escolares precisam ser mais eficazes e éticos, pois se assim fossem o estudante poderia ser reintegrado a escola. Mas talvez esteja exatamente nesse ponto o problema, a escola não quer responsabilizar-se por seus estudantes, é melhor considerá-los indisciplinados e incapazes, portanto um problema. O ponto de vista da escola é limitado perante a educação enquanto prática de transformação.
A escola apresenta-se não como emancipadora dos indivíduos, mas com o papel de coerção, mesmo que os professores já detectem que as punições aplicadas, expulsarem da sala, por exemplo, são ineficientes, continuam a aplicá-la por comodidade pelo que aparenta. O exercício do poder é desigual na sala de aula, os estudantes têm que está o tempo todo se humilhando perante o professor jamais construindo com ele, tem que pedir autorização para falar, levantar, sentar, mesmo que na maioria das vezes seja consentido, assim o fazem para demonstrar que exercem poder sobre o outro como se fosse detentor do conhecimento.
É necessário que seja dito que mesmo com esse aparelho repressor os estudantes são sujeitos ativos no processo, pois não aceitam de bom grado, satirizam e até mesmo desobedecem quando os professores agem com arbitrariedade, tendo opinião sobre os acontecimentos e influenciando neles. Na maioria das vezes o senso crítico é considerado como indisciplina. Usaremos três exemplos para demonstrar. O primeiro trata-se de uma garota que se recusa a ler em sala, mesmo com insistência quase que ameaçadora do professor, e por isso professor notifica-a e obriga que ela peça desculpas, coisa que ela faz com resistência, mas quando tem a sua liberdade diz que não foi sincera. A segunda e a terceira são ações da estudante Esmeralda, em uma das circunstâncias onde ela é escolhida para leitura, pergunta se é obrigada a tal de forma satírica, sabendo a resposta (que é sim), mas a sua pergunta é em um tom de quem sabe que existe uma autoridade do professor, mas ela não é legítima. Em outro momento, logo no primeiro dia de aula o professor orienta a turma a pegar uma folha e colocar os nomes em cima das carteiras, e Esmeralda não obedece imediatamente retruca que o professor deve fazer o mesmo. Por esses e outros motivos percebemos a influência direta de cada estudante em sala de aula.
O educador tem que está atento aos vários momentos da sala de aula para incitar os descobrimentos, como é o caso do professor François que utiliza a tatuagem de um dos discentes na aula, o que é importante, pois o mesmo relutava a participar da aula.
A questão da linguagem é também decisiva na turma, pois a maioria não fala o francês formal (disciplina que é lecionada pelo professor François), e o professor quer que os estudantes falem o idioma como se ele fosse o correto, uma espécie de processo civilizatório, o professor tenta fazê-lo ignorando a pluralidade da turma, mas como sujeitos participativos que são, discutem com o professor para convencê-lo que deve usar palavras mais variadas para atender a demanda da classe. Isso acontece no contexto em que o professor quer estimular a classe a descobrir significados novos para as palavras, o que é muito bom; só que entendemos que não adianta ao professor formar seus planos de estimulo baseado só na sua consciência, é iminente que ele esteja associado à prática diária dos estudantes e também os estudantes dele façam parte, pois mesmo sem a “permissão” eles não só tentaram, mas participaram do processo de aprendizagem.
Compreender o processo social e histórico dos estudantes, todavia não significa não ter rigor no que é lecionado, pois os estudantes de classes subalternizadas têm conhecimentos, mesmo que não seja o “padrão”, ignorar o rigor a estes é faltar com a ética é “agir errado” com eles. O professor tem que ensinar aos estudantes a “pensar certo” fazendo com que eles percebam que são sujeitos que podem transformar o mundo e não que tem obrigação de mantê-lo como está, como se este fosse imutável.
É necessário que esse professor que na verdade é uma metonímia, não se subordine as condições impostas e aprenda com a prática diária que ensinar não é transmitir conhecimento, mas ensinar é fazer-se na sala de aula além de fazer. É admitir que o ensino que prioriza o conteúdo é arbitrário ao ato de ensinar-aprender. Ensinar e aprender estão juntos, e são inseparáveis. Não se deve colocar o professor no lugar de autoridade máxima, nem achar que esse serve aos estudantes como diria Sócrates em debate com Transímaco, em A República de Platão, como se o professor simplesmente estivesse fazendo um favor ao estudante, mas entender como Paulo Freire que eles são necessários um ao outro, que é impossível aprender se não ensinar.
Referências Bibliográficas
§  Filme
“Entre os muros da escola” de Laurent Cantet. França, 2008.
§  Livros
Platão. A República. São Paulo: Martin Claret, 2006.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
§  Sites
Resenha Entre os muros da escola. Disponível em <http://www.tempopresente.org/ >. Acessado em maio de 2011.
"Entre os muros da escola: Possibilidades para rever as noções de disciplina e avaliação". Disponível em <http://revistas.univerciencia.org/> . Acessado em maio de 2011.
Resenha do filme Entre os muros da escola, Por Leonora Corsini. Disponível em <http://www.universidadenomade.org.br/?q=node/50> Acessado em maio de 2011.
O filme entre os muros da escola mostra que a escola está isolada e incapaz de resolver os problemas criados pela sociedade. Disponível em: <http://glaucocortez.com> Acessado em maio de 2011.

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